Memória desbotada

"Sempre me assustei com o tempo. Nossa casa ainda tem alguns brinquedos esquecidos e os donos deles estão comendo apressados para ir para a faculdade".

     Urso pelúcia esquecido (Foto: thinkstock)

Eu não me lembro mais de algumas coisas.  Qual dos meus filhos fazia o que, por exemplo. O tempo parece correr mais rápido que os dias e muitos álbuns ainda estão por fazer. Nossa casa ainda tem alguns brinquedos esquecidos e os donos deles estão comendo apressados para ir para a faculdade. Não me lembro qual foi a última vez que arrumei os armários. Trabalhei muito e não vi passar talvez os últimos quatro anos. Preciso arrumar nossa casa. As fotos dos porta-retratos ainda são as que foram reveladas de um rolo de filme de 36 poses. Eu tenho uma vida inteira para pôr em ordem e o tempo é cachoeira exuberante em minhas mãos. 
Dia desses abri uma gaveta do quarto do Pedro e tive vontade de rir.  Depois, de chorar. Não tirei a última leva de meias e cuecas pequenas. Ri ao imaginar eles pondo e tirando as peças e chorei porque, cada vez que as devolvem para a gaveta, vão transformando o tempo corrido em algo assim congelado na casa. Uma gaveta que se abre, um copo do Taz-Mania esquecido no fundo do armário da cozinha, a gaveta de carrinhos que nunca ninguém teve coragem de doar. Meus pequenos agora são decididamente grandes. Às vezes, acho que foi acontecendo, mas há dias que pareço ter entrado num buraco como Alice, no País das Maravilhas, e ter subido de volta com dois homens que agora comem apressados na minha sala. Minha aflição é que, mesmo com tantas fotos e brinquedos ainda pelos cantos, me lembro cada vez menos de como era. Tudo vai se embaralhando, o tempo presente é vigoroso e toma para si as cuecas, os brinquedos, o copo de plástico e os atualiza em nossa história.
Sempre me assustei com o tempo. Sempre me surpreendeu sua velocidade diante do tanto de coisas possíveis de se fazer nesta vida. Na casa da minha avó, tinha uma gaveta que engolia tudo. Se alguém encontrasse uma tampa de caneta, uma conta de luz, uma cabeça de boneca, esse tipo de coisa que a gente nunca sabe onde pôr, a tal gaveta seria o seu destino. Eu era fascinada por aquela gaveta. Para um bom detetive, estavam ali todas as pistas. Um pouco de imaginação e se desvendaria de uma vez toda a história da família simplesmente virando a gaveta em cima da mesa. 
A verdade é que, como dizia Neruda, sou coisista. Tenho amor pela vida impressa nas coisas. Fui juntando em minha casa pedaços da história de nossa família. Nossos pratos, toalhas de mesa, mesas, cadeiras, os mais variados objetos, que foram sendo recolhidos com amor de cada casa desfeita de nossos tios e avós. Sem querer, ou querendo que seja sem querer, tenho mesmo deixado o tempo esculpido em nossos dias.
Não é à toa que não dei conta de arrumar os brinquedos e as meias.  Ato falho, talvez. Saudade antecipada. Mas acho que, mais que tudo, beleza da vida vivida.
Fonte: http://revistacrescer.globo.com

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