Ensino que agoniza com a descontinuidade administrativa

A Escola Bosque do Amapá poderia ter mudado a Educação

No abandono de um projeto-modelo, a síntese de um ensino que agoniza com a descontinuidade administrativa

Fernanda Salla

"Eu passava 18 horas no barco, deitado numa rede, para chegar à ilha. Enfrentávamos ondas de até 3 metros de altura, um desafio para estômagos fracos. Mas valia a pena. Testemunhava a construção de algo muito maior do que uma simples escola", lembra o advogado Thiago Klautau. Suas recordações de garoto são sobre o Bailique, um arquipélago a 190 quilômetros de Macapá. Até os 12 anos de idade, ele cruzava as águas do Rio Amazonas com os pais, José Mariano Klautau de Araújo e Dula Maria Bento de Lima, consultores e idealizadores da Escola Bosque do Amapá. A iniciativa "maior que uma escola" virou realidade em 1998. De lá para cá, o trajeto desafiante e o elevado tempo de viagem não mudaram. Mas a promessa de transformar a cultura escolar de áreas de floresta não existe mais. 

O projeto foi interrompido. No ano de sua inauguração, a equipe de NOVA ESCOLA visitou a região e atestou o caráter inovador da proposta. "Inspirada em aldeia indígena, a arquitetura da escola possibilita o contato dos alunos com a natureza: as aulas acontecem ao ar livre e em salas abertas, onde se plantam ervas e flores", relatava a reportagem A Escola Que Nasceu da Mata

Retornamos ao Amapá e encontramos um cenário que pouco lembrava os sonhos de menino de Klautau. Assim como tantas outras iniciativas educacionais pelo Brasil, o projeto foi vítima da descontinuidade administrativa. Em matéria de políticas públicas, o nocivo "manda parar" é uma tradição secular. "Basta dizer que, desde que o Ministério da Educação (MEC) foi criado, em 1930, o tempo médio de permanência dos titulares na pasta é inferior a um ano e meio. Nas secretarias estaduais e municipais não é diferente", afirma Carlos Roberto Jamil Cury, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "A falta de continuidade nas ações governamentais é uma das maiores calamidades da área."


As ruínas que abrem esta reportagem evidenciam o desperdício de dinheiro e trabalho por trás da ruptura de um programa público. Trata-se do Hotel Escola Bosque, um anexo da instituição de ensino estadual, construído para ser um polo de desenvolvimento prático de aprendizados em turismo. Também deveria atrair visitantes e pesquisadores para a região, cooperando para a geração de conhecimento e renda. Finalizado em 2002, ele nunca foi inaugurado. A mata - rica em açaizeiros - clamou de volta para si a maior parte dos cômodos. Já não se tem acesso aos chalés do conjunto. 

O restante da escola continua de pé. Atende atualmente 1.014 alunos da Educação Infantil ao Ensino Médio. Mas nem de longe espelha a proposta original, elaborada no mandato de João Alberto Capiberibe (PSB), governador do Amapá de 1995 a 2002. O currículo seguia o método socioambiental, em que natureza, história e tradição locais eram a base para o desenvolvimento dos conteúdos, agregando o saber científico ao empírico. Pautado pela sustentabilidade, ambicionava incentivar a preservação dos aspectos naturais das oito ilhas que formam o arquipélago. Aulas especiais, como Legislação e Política Ambiental, completavam a grade horária de período integral. Havia cursos técnicos de Engenharia da Pesca Artesanal, Manejo da Flora e outras áreas para que a população ampliasse seus conhecimentos e tivesse opções profissionais. 

Elaborado em conjunto com as comunidades locais, o projeto pretendia suprir as demandas de ensino no Bailique. "Antes da Escola Bosque, os ribeirinhos só estudavam até a 4ª série. Quem quisesse continuar a escolarização tinha de ir a Macapá e não retornava mais. A cultura daquele povo estava se perdendo", conta Dula, responsável pelo projeto arquitetônico da instituição.


Por que parou? 

As imagens desta reportagem revelam que a Bosque sobrevive - fruto do comprometimento dos professores que seguem trabalhando firme. Elas escondem, porém, as chances perdidas naquele espaço. O currículo passou a ser exatamente o mesmo do restante da rede amapaense, sem levar em conta as características e necessidades do entorno. O horário integral foi fatiado em três turnos. Das disciplinas específicas só restaram a de Linguagem e Literatura das Etnias e a de Plantas Alimentícias e Medicinais, essa última temporariamente sem professor. Não há mais cursos técnicos. 

A razão para isso? Mudou o governo do estado e, com ele, o foco dos investimentos. Em geral, são questões políticas que motivam a interrupção de projetos iniciados em gestões anteriores. Mas o recomeço do zero tem justificativas diversas. Algumas, a bem da verdade, são consistentes. Como a que diz respeito a uma divergência clássica no campo das políticas públicas: a oposição entre universalistas e residualistas. 

Os primeiros afirmam que as políticas sociais devem garantir o direito de todos os cidadãos. Já os residualistas defendem que as ações governamentais precisam privilegiar os que mais necessitam. Por mais que a Constituição de 1988 fale em direitos universais, as condições políticas - e, sobretudo, as restrições econômicas brasileiras - fizeram com que boa parte das iniciativas sociais não pudesse ser estendida ao conjunto da população. "Programas que contam com um tratamento diferenciado sempre foram polêmicos. Quem tem uma linha mais universalista defende que não se pode investir em algo que não atenda a todos", explica Luiz Araújo, docente da Universidade de Brasília (UnB). 

Escolas-modelo como a Bosque se situam no meio dessa controvérsia. O mesmo ocorre com outros equipamentos públicos caros e vistosos, como os Centros Educacionais Unificados (CEUs), na capital paulista. No Rio de Janeiro, os famosos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), construídos nas décadas de 1980 e 1990 durante as duas gestões de Leonel Brizola (PDT), também não progrediram. Segundo dados da Secretaria de Educação do Estado, das 515 escolas inauguradas naquele período, permanecem 285. O tempo integral, um dos pilares do projeto, continua a existir em apenas 68 delas. Foram municipalizadas 101 unidades. Muitos prédios acabaram destinados a fins alheios à Educação, dando lugar a postos de bombeiros e outros órgãos públicos. 

Parte dos críticos atribui o desmanche ao custo do projeto, o que inviabilizava sua universalização. Mas a opinião não é unânime. De acordo com o artigo Comparação das Estimativas do Custo/Aluno em Dois CIEPs e Duas Escolas Convencionais no Município do Rio de Janeiro, de Marly Abreu Costa, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o investimento dos Cieps por aluno de 1ª a 4ª série com pessoal e material se mostrou três vezes maior do que o das escolas regulares. O prédio, por sua vez, requeria o dobro de recursos. Porém, se operasse com a capacidade máxima, a verba seria justificável. "Além disso, a conta não considera o viés social da iniciativa, que deveria impactar em menos gastos públicos com outras áreas, como segurança", diz Lia Faria, docente da UERJ que trabalhou nos Cieps por 13 anos. 

No Amapá, a Escola Bosque motivou uma discussão parecida. "Havia críticas de que o modelo não era replicável, mas tínhamos o plano de construção de mais sete unidades, que funcionariam como centros de referência e formação. Não deram tempo para isso", diz Dula. Procurado pela reportagem, Waldez Góes (PDT), que cancelou o projeto quando governou o Amapá entre 2003 e 2010 e está de novo à frente do estado, não retornou nosso pedido de entrevista.

"Encerrar uma política não é errado, mas é preciso que haja um planejamento de quando ela daria resultados e indicativos claros para avaliá-la." 
Luiz Araújo, professor da Universidade de Brasília (UnB)



Polêmicas pedagógicas
Bailique. Distante 190 quilômetros de Macapá
Outras mudanças acontecem por divergências nas concepções pedagógicas. É o caso do Programa de Formação Continuada Parâmetros em Ação - Meio Ambiente na Escola (Pama), concebido no MEC durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). "Elaboramos materiais para trabalhar o tema de modo transversal no currículo escolar. Também estruturamos uma rede de educadores para viabilizar a formação em estados, municípios e escolas", conta Lucila Pinsard Vianna, coordenadora de Educação Ambiental no Ministério entre 1999 e 2002. 

Depois de pronto, porém, o Pama teve apenas mais seis meses de vida. "Houve uma mudança de postura pedagógica quanto aos temas transversais mesmo na Espanha, onde eles surgiram", afirma Rachel Trajber, que sucedeu Lucila na coordenadoria de Educação Ambiental do MEC entre 2004 e 2011, na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). "É preciso respeitar o trabalho anterior, mas há políticas que precisam ser atualizadas e acompanhar as mudanças de conjuntura", defende ela. 

E ninguém será punido 

No entanto, ocorre que as diferenças conceituais muitas vezes são uma cortina de fumaça a encobrir mesquinharias, como intrigas partidárias, vaidades pessoais ou o frio cálculo político que visa prejudicar adversários nas eleições seguintes. "Falta no Brasil um mecanismo que responsabilize os governantes pelos prejuízos. Ninguém é punido", explica Thiago Klautau, que, motivado pelo caso da Escola Bosque, investigou em seu doutorado a ruptura de políticas públicas. 

O problema é que grande parte dos projetos é pensada como política de governo, e não de estado. "Na área de Educação, os governantes deveriam se comprometer com algo para além de seus mandatos, pois qualquer mudança requer tempo e grande mobilização para acontecer", afirma Neide Nogueira, coordenadora pedagógica do programa de Educação Ambiental da Comunidade Educativa Cedac. A responsabilidade é tanto de quem cria quanto de quem recebe o projeto. Na mesma linha, Araújo, da UnB, ressalta que considerar o longo prazo é importante até mesmo para saber quando desistir de uma ação. "Encerrar uma política não é necessariamente errado, mas é preciso que haja um planejamento de quando ela daria resultados e indicativos claros para que se possa avaliá-la", sustenta. 

Entre os especialistas, há consenso de que a participação da população é essencial no sentido de pressionar o poder público a continuar com o que está dando certo. Sem essa mobilização, iniciativas escolares com pouca visibilidade, como é o caso da Escola Bosque, isolada nas águas do Amazonas, acabam sendo o elo mais frágil. 

No Bailique, o cenário anterior ao projeto voltou. Habitantes abandonam as ilhas. Saberes tradicionais, como o de carpintaria naval, são esquecidos. Pouco a pouco, a falta de manutenção e a força da natureza levam adiante a melancólica tarefa de apagar os vestígios do projeto que poderia ter transformado a Educação da região. A arquitetura original, com coberturas de palha à moda das ocas waiãpi, deu lugar a telhados de amianto, incompatíveis com o clima quente e úmido. A cena de alunos sentados em carteiras enfileiradas dentro de salas abafadas substituiu o contato direto com a natureza de que fala a reportagem de 1998 em NOVA ESCOLA. Não acontecem as lições planejadas embaixo das árvores ou na horta da instituição - hoje vazia - e à beira do rio. O auditório com infraestrutura completa, à disposição para eventos que receberiam pesquisadores, está subaproveitado. E a louça fabricada especialmente para os hóspedes do Hotel Escola Bosque, ornamentada com o logotipo da instituição, hoje é usada apenas nas raras festas da própria escola. Por lá, não há muito o que comemorar.


Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/politicas-publicas/escola-bosque-amapa-poderia-ter-mudado-educacao-854840.shtml?page=0

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