A crase não é um acento


José Tereziano Barros Neto

Especialista em Produção de Texto em Língua Portuguesa

A simples menção à crase faz eminentes cientistas sofrerem uma dolorida queda em sua autoestima. “Nunca entendi quando usar esse acento. Nunca sei quando tem e quando não tem crase. Por que tanta celeuma por um risquinho? Fico perdido no meio de tantas regras!” O que se perdeu, a bem da verdade, foi o processo ensino/aprendizagem. Não “existe” crase. Não é algo que o texto “tem” ou deixa de ter. Nem se trata de um acento. O que se costuma chamar de crase é o acento grave, indicativo da ocorrência de um fenômeno linguístico, em que se fundem duas vogais idênticas, em função da tendência natural de simplificar a fala. Para se entender a ocorrência da crase, é preciso lembrar algumas regras simples, como classes de palavras, concordância nominal e regência verbal.
Nas primeiras lições de gramática, sobre classes de palavras, ensina-se que o artigo serve para acompanhar o substantivo. Ensina-se, ainda, que alguns verbos, os transitivos indiretos, precisam do auxílio de certas preposições que lhes completem o sentido. Descobre-se que algumas classes são mais importantes que as outras, pois não saem do dicionário para compor uma frase sem as suas “damas de companhia”, cuja ausência, ou inadequação, comprometem o sentido do que se pretende escrever. Uma regra básica, a da concordância nominal, determina que um substantivo feminino, no singular, deverá estar acompanhado de um artigo também feminino (concordância de gênero), também no singular (concordância de número). Outra regra se refere à regência verbal. Alguns verbos, sozinhos, não fazem sentido e precisam de alguma preposição para lhes reger. Para entender melhor como ocorre a crase, vejamos o caso do verbo ir. Quem vai, vai a algum lugar. Vou (verbo ir) está regido pela preposição praia (substantivo) está acompanhada do artigo a. Não se pode dispensar a preposição, nem o artigo, sob pena de se prejudicar o sentido da frase. Há outros verbos que são regidos por essa preposição. Uma consulta ao dicionário, caso não se disponha de uma gramática, pode ajudar.
Tente alguém dizer “Vou a a praia”, pronunciando os dois “a”, sem parecer gago. Se fosse um problema de matemática, ao invés de a a, bastaria escrever 2a. “Vou 2a praia” também ficaria estranho, escrito ou pronunciado. A solução, então, seria fundir essas duas vogais numa só, para facilitar a pronúncia e a escrita. Para que os leitores saibam que duas vogais idênticas foram fundidas, e que são duas letrinhas que representam duas palavras inteiras e muito importantes para o entendimento do texto, melhor seria afixar uma placa sobre ela, com os dizeres “Atenção: aqui há uma preposição e um artigo”.
Estranho? Sim, muito estranho. É preferível usar o acento grave, indicativo da ocorrência de crase. Essa é a função daquele “risquinho”. Em razão disso, não se deve perguntar “aqui tem crase?”, “devo usar a crase?”. Crase não é um acento, não existe crase, nem se usa crase. Crase ocorre.Crase acontece. A pergunta correta seria “O verbo que estou usando é regido pela preposição a?” e “A próxima palavra é ou começa pela letra a?” Se forem indispensáveis, ocorrerá sua natural fusão, que deverá ser indicada. Há também expressões que contêm a preposição a: referir-se a; com relação a; quanto a; se deve a; devido a. Nesses casos, o hábito da leitura e a prática da escrita vão ajudar a consolidar o aprendizado. Quanto à Botânica, refere-se à biologia relativa às plantas e muitos de seus registros se devem à dedicação de Linnaeus.
Excerto do artigo “Redação científica: entre a descoberta e a publicação” (Revista Brasil. Bot., V.34, n.1, p.141-143, jan.-mar. 2011)

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