ANO NOVO… MESMO?


Por Flávia Melissa
Essa semana, ao entrar no shopping perto de casa, surpreendi os funcionários descarregando a decoração de Natal deste ano. A cena não era das mais inspiradoras: dois homens com cara de tédio e irritação, tiravam um Papai Noel esquisito, embalado em plásticos diversos já meio amarelados, de dentro de um caminhão.
Algumas horas antes, eu tinha tido uma conversa muito interessante com uma amiga. Falávamos sobre o processo de autoconhecimento e sobre a quantidade de medos e de resistências que criamos entre nós e aquilo que mais desejamos. Lá pelas tantas, depois de algumas reflexões bem apuradas sobre como nossas mentes acabavam sendo as grandes causadoras de dor neste processo, ela me disse: “A mente é a nossa criança ferida”.
Pausa para um UAU.
UAU.

Eu nunca tinha pensado desta forma, mas do jeito que ela colocou fez tanto sentido que eu mal consegui respirar. Porque é exatamente isso: nossas mentes, do modo como elas funcionam, orientadas para evitar conflitos, evitar riscos e buscar segurança acima de qualquer outra coisa, começam a ser moldadas de acordo com nossos primeiros traumas, dores e choques infantis. Preste atenção no que eu acabei de escrever: evitação de conflitos, evitação de riscos e busca por segurança. Não é exatamente assim que se comporta uma criança assustada?
Esta ficha que caiu me trouxe uma clareza enorme sobre alguns processos que eu mesma venho vivendo. Ao mesmo tempo em que eu amaria conquistar algumas coisas, morro de medo de chegar lá. Se eu analiso este funcionamento com minha mente de adulta, este mecanismo não faz o menor sentido – mas se eu paro por alguns instantes e resgato a criança ferida e magoada dentro de mim, o que vem é um novo…
UAU.
Pensando na minha criança ferida, consigo entender perfeitamente o porquê de cada um destes medos. Não sou eu, adulta e racional, quem sente medo do que mais quero na vida. É a minha criança ferida, magoada e assustada que não quer perder o que ela considera, em sua mente infantil e imatura, benefícios e ganhos associados àquilo que eu, adulta, mais quero mudar.
Vou dar um exemplo bem pontual de algo que estou vivendo (e confesso que não me sinto totalmente confortável de falar abertamente sobre isso, mas vamos lá). Eu tenho a maior revolta do mundo com o fato de, até hoje, nunca ter conseguido desenvolver uma relação saudável com meu corpo/peso. Essa história me irrita e me deixa bem P da vida, porque meu primeiro regime foi quando eu tinha 6 meses de idade. Passei minha infância inteira na problemática engordar / emagrecer e, na adolescência, como já era de se esperar, desenvolvi um transtorno alimentar que me roubou e alegria, relações e autoestima.
Eu bem que achei que tinha me resolvido em relação a isso, mas daí engravidei e tudo virou de ponta cabeça. Os peitos caíram (verdade seja dita), a barriga amoleceu, a bunda dobrou de tamanho depois de passar uma criança pelo meio dos ossos do meu quadril. Eu nunca mais na minha vida consegui ter a mesma disciplina alimentar ou de atividades físicas que um dia eu tive. Conclusão: estou dois números a mais no meu manequim do que estava antes de engravidar. E o que me deixa mais irritada e passada e não acreditando não é nem estar acima do peso que aprendi a considerar o ideal para mim, e sim o fato de que eu ainda associo a minha autoestima e o meu amor-próprio ao formato, tamanho e peso do meu corpo.
Abre parênteses. QUE ÓDIO. Fecha parênteses.
Outro dia fiz um exercício de visualização. A ideia era eu me visualizar dentro do corpo que eu gostaria de ter (e que nem passa perto de capas de revista, juro) e experimentar como eu me sentia. E a verdade é que eu fiquei embasbacada por perceber que eu morria de medo de, finalmente, chegar onde eu queria chegar. Esta sensação não fez o menor sentido para mim: minha mente racional e adulta entrou em colapso. Como é que eu posso sentir medo de resolver um problema que me aflige há tantos anos? Não faz o menor sentido, certo?
Pausa para você conhecer a minha criança ferida: uma menininha gordinha que, por ter o segundo nome “Melissa”, igual a uma famosa marca de sandálias infantis que vinha com uma pochete de plástico, vivia sendo zoada de “Melissinha que vem com a pochetezinha – mas a sua é de verdade!” pelos coleguinhas da escola. Esta menininha sabe que seu pai é médico e que trata de pessoas gordinhas que querem emagrecer, e vive vendo sua mãe fazer dietas malucas e tomar remédios para emagrecer. Esta menininha percebe, perspicaz como ela só, que a questão gordura/peso/emagrecimento é um tema em sua família. Um elemento central, que une as pessoas. E esta menininha constata, de um jeito torto e infantil, que ter um problema de peso é uma forma de “pertencer” à sua família – ser cuidada pelo papai e reconhecida pela mamãe – e todas as vezes em que os coleguinhas apertam sua barriga e a chamam de gordinha estão, ao mesmo tempo em que a magoando, afirmando que ela faz parte daquele grupo.
Agora, perguntem para essa menininha assustada se ela quer resolver o “problema” definitivamente. Ninguém se surpreenderia se ela respondesse um sonoro NÃO.
A verdade é que todos nós temos esta criança ferida dentro de nós. Todos nós temos uma parte infantil, insegura e magoada que, por mais que ouça nosso adulto escrever listinhas com resoluções de Ano Novo, está, na verdade, repetindo dentro de sua própria cabeça: “nem a pau, Juvenal!”.
E aí vêm as luzinhas de Natal, as árvores enfeitadas, os laços de fita dourados e vermelhos – as resoluções de Ano Novo. Nós somos todos esses caras, entediados e irritados, desembrulhando o Papai Noel de um plástico amarelado mais uma vez, prometendo coisas que não seremos capazes de cumprir para ter um ano que juramos por Deus que queremos, mas que nunca teremos. Porque todos nós temos dentro de nós uma parte que vibra a cada não-conquista e a cada não-vitória. E ninguém, absolutamente ninguém, lucra em nos contar que Papai Noel não existe e que, por isso, não precisaríamos desembrulhá-lo todos os anos. Ninguém ganha nada em nos dizer que, entra ano e sai ano, nossas vidas vão continuar sendo exatamente as mesmas porque nós continuamos sendo um amontoado de conteúdos inconscientes que ficam se auto-afirmando o tempo todo. Loucura, loucura, loucura.
O lado bom de tudo isso é perceber que, ao menos no aqui e agora, estou consciente de tudo isso. Esta dinâmica de pertencimento que eu trouxe quatro parágrafos acima é algo que assume inúmeras outras raízes em minha vida, e me mostra o quanto eu ainda preciso me libertar de dores infantis. O quanto eu ainda tenho que aceitar, acolher e perdoar em mim e também em meu pai e em minha mãe. O quanto eu preciso olhar cada um deles nos olhos e dizer, com o peito aberto, “eu preciso do seu amor mais do que qualquer outra coisa na vida”. Ainda que eles não entendam nada (ou talvez entendam, se estiverem lendo este texto, rs).
A verdade é que não importa quantas árvores de Natal você enfeite, quantos Papais Noel você tire do armário ou quantas meias você pendure na lareira, nada na sua vida vai mudar se você não mudar por dentro primeiro. E eu me sinto muito honrada e privilegiada de, de alguma forma, contribuir para o seu processo de conscientização.
Que eu possa compartilhar estes processos meus contigo por muito tempo ainda. E que a cada surgir dos enfeites de Natal nos shoppings possamos nos comparar com quem éramos um ano antes e constatar que estamos, afinal de contas, um pouco mais despertos.

Fonte: http://flaviamelissa.com.br

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