O que é Imaginação Moral e por que você deve se preocupar com isso



"Se o cérebro, a mínima parte dele que seja, deixa de estar alerta por um momento, penetram lá, como parasitas difíceis de erradicar, «idéias» vindas da imprensa, do rádio, da televisão, da propaganda geral, dos produtos em série, do consumo degenerado, dos doutores em lei, arte, literatura, ciência, política, sociologia. Essa massa de desinformação, não só inútil como nociva, nos é, aliás, imposta de maneira criminosa nos primeiros anos de nossa vida. E se, algum dia, chegamos a pensar no verdadeiro sentido do termo, todo o restante esforço da existência é para nos livrarmos de uma lamentável herança cultural. Pois, infelizmente, o cérebro humano é um dos poucos órgãos do corpo que não têm uma válvula excretora". – Millôr Fernandes


Pode ser que você já tenha se perguntado sobre a real importância de ler literatura de ficção para seus filhos, e por que esse hábito deveria ser cultivado por toda a vida. Tudo bem, você já deve estar convencido de que a leitura em voz alta é fundamental para o alto rendimento em leitura no momento da alfabetização. Mas haveria algo além disso? Não seria mais importante priorizar “leituras sérias”, com informações sobre o mundo real, e não perder tempo com historinhas fantasiosas? Seriam essas histórias meros passatempos permitidos às crianças com a mesma condescendência com que permitimos que comam doces sem valor nutritivo? Afinal, por que ler contos de fadas? E, por fim, haveria alguma diferença, em termos de formação do caráter, entre ler isto ou aquilo?
A falta de esclarecimento sobre a real importância da literatura de ficção e sobre o seu papel na formação do caráter pode ser um dos motivos do fracasso das campanhas de incentivo à leitura no Brasil (fracasso confirmado pelas estatísticas que comprovam que o brasileiro lê em média menos de cinco livros por ano, dos quais apenas dois por inteiro). No fim das contas, é como se ler fosse um remédio amargo cujos benefícios, vagamente admitidos, são raramente priorizados.

O que é imaginação moral?

Para compreender a importância da literatura de ficção, e qual o seu papel na formação do caráter, abordaremos um assunto que foi bastante discutido por críticos literários e da cultura no século XX: a chamada imaginação moral.
Para entender o que é isso, será preciso confrontar o relativismo cultural que penetrou na mente contemporânea e admitir o fato de que existe uma natureza humana comum a todos os homens; que, no fundo de toda a variedade da experiência humana, há verdades permanentes e leis universais que podem ser conhecidas e expressadas em termos de linguagem humana, ainda que de maneira imperfeita.
Segundo essa concepção, conhecer-se a si mesmo seria conhecer, de algum modo, também o outro, já que todos os seres humanos compartilham, descontadas as inumeráveis diferenças de suas vidas particulares, uma essência comum.
A imaginação moral poderia, assim, ser definida como a capacidade de conceber os outros seres humanos como seres morais, não como meros amontoados de células cujo comportamento possa ser esquematizado em uma equação. Pelo exercício da imaginação moral (por exemplo, quando lemos uma grande obra da literatura), criamos metáforas com base nas imagens captadas pelos sentidos e gravadas em nossa memória; essas metáforas, por sua vez, funcionarão como modelos para identificar e compreender correspondentes morais na experiência concreta.
Deste modo, a imaginação moral proporciona o senso de orientação no caos da experiência e descortina horizontes de possibilidades para que vivamos uma vida que faça sentido.
Por sua vez, a ordem moral, captada e trabalhada pela imaginação moral, informará a ordenação da alma, o que, em uma escala ampliada, repercute sobre a ordenação da própria comunidade política – um ser plenamente humano realiza-se não apenas em suas aspirações particulares, mas na vida em comunidade, nas relações com seus semelhantes.
Assim, sem o desenvolvimento da imaginação moral, não será possível compreender nem mesmo um indivíduo em sua particularidade – quanto menos uma sociedade, sua história e sua política.

E o que isso tem a ver com a literatura de ficção?

O assunto da grande literatura de ficção, a literatura dos clássicos, é essa permanência no fundo de toda a variedade da experiência humana. Os grandes escritores aliaram, à percepção dessa realidade, a arte de falar de maneira memorável sobre as coisas permanentescriando símbolos que ficaram eternizados na literatura de ficção que produziram.
Por meio da alta literatura de ficção, desenvolvemos uma consciência normativa, ou seja, uma consciência sobre o que é ser verdadeiramente humano. Por isso, quando lemos Otelo, não ficamos conhecendo apenas uma história de ciúme entre um casal específico: ficamos conhecendo mais sobre nós mesmos, sobre os tipos humanos, sobre as fraquezas, os erros e a maldade a que todos – até os melhores dentre nós – estamos sujeitos. Ampliamos nossa imaginação moral, ou seja, nossa capacidade de ver o outro, e a nós mesmos, como seres vivendo uma vida moral.
Se não somos capazes de imaginar o outro como um ser tão complexo quanto nós mesmos, tampouco teremos idéias razoáveis sobre a sociedade humana. Os séculos XIX e XX foram prolíficos em idéias enlouquecidas sobre a sociedade humana, que causaram tanto sofrimento e tanta morte. Sem uma imaginação moral desenvolvida, nossa visão de mundo será esquemática e fantasmagórica; o outro, reduzido a um mero personagem do nosso pobre teatro mental. Amar ao próximo como a nós mesmos passa a ser não só impossível, mas até mesmo inconcebível.

O potencial corruptor da má ficção

Mas nem toda literatura é fruto dos trabalhos da imaginação moral; nem toda literatura busca expressar em símbolos as coisas permanentes. Russell Kirk, crítico americano do século XX que explorou muito o tema da imaginação moral, nos recorda da existência da imaginação idílica e da imaginação diabólica.
O modo de imaginação denominado “idílico”, que tem em Jean Jacques Rousseau um de seus maiores e mais influentes representantes, rejeita o que é antigo – velhos dogmas e costumes – e aspira à emancipação dos deveres e das convenções. A imaginação idílica – também nos recorda Kirk – geralmente produz desilusão e tédio. Desse deplorável resultado origina-se um produto ainda pior, que é a imaginação diabólica: segundo T. S. Eliot, um tipo de imaginação que se regozija na perversão e no subumano. É o tipo de imaginação que permeia a quase totalidade da ficção disponível hoje em dia – nos filmes, nas telenovelas, na seção de “mais vendidos” das livrarias.
Mas esse tipo de ficção pode corromper? Em outras palavras: como pai ou mãe, você deveria se preocupar com a qualidade da ficção que seu filho está lendo?
Sobre o potencial corruptor da má ficção, não pode haver dúvida. Só mesmo uma era dominada pela imaginação diabólica poderia acreditar que tanto faz ler bons ou maus livros; que o importante é “ler”; ou que é possível incutir em jovens intoxicados de televisão o amor pela virtude e pelo dever. É claro que ler maus livros não condena ninguém a agir mal, e que ler bons livros não converte ninguém automaticamente em um ser humano melhor. Entretanto, não devemos ser ingênuos a ponto de acreditar que uma criança deixada à deriva, sem que lhe seja apresentado o que de melhor já foi produzido pela humanidade, irá inevitavelmente deparar-se um dia com esse tesouro e valorizá-lo. Nosso ambiente cultural não favorece essa descoberta. Pelo contrário: tudo ao nosso redor tende a nos puxar para o divertimento baixo, para a perversão dos valores, para a satisfação dos instintos animais, como se isso fosse a suprema realidade, a única possível.
Por esse motivo, ter uma compreensão clara sobre a diferença qualitativa entre os diversos tipos de ficção disponíveis hoje em dia e incentivar a preferência por uns em detrimento de outros é, na verdade, uma obrigação para quem compreendeu o caos moral em que vivemos. Você não deixaria seu filho pequeno brincar com uma arma carregada, certo? Pois é: a má ficção é uma arma de alto poder destrutivo.
Acreditamos, como Orton Lowe, que Dentre todas as possibilidades existentes na vida educacional de uma criança, nenhuma é mais promissora do que a possibilidade de autoaperfeiçoamento por meio da leitura de bons livros. Em um país onde a leitura definitivamente não figura entre as preferências nacionais, essas palavras soam como um alerta e um chamado à consciência.

Por Marcela Saint Martin
Fonte: http://comoeducarseusfilhos.com.br

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