Jean Piaget

Jean Piaget: desenvolvimento e aprendizagem

Jean Piaget (1896-1980) foi o nome mais influente no campo da educação durante a segunda metade do século 20. Leia reportagem sobre a vida e a obra do biólogo suíço que revolucionou o modo de encarar a educação de crianças ao mostrar que elas não pensam como os adultos e constroem o próprio aprendizado.

Confira abaixo os principais conceitos piagetianos.


Esse conceito reúne saberes da Biologia, da Psicologia e da Filosofia para explicar como todos podem aprender e como a inteligência se desenvolve

Com o conceito de equilibração, Piaget demonstrou que a Inteligência deve ser confrontada para evoluir.

Para explicar como todos podem aprender e o desenvolvimento da inteligência, Jean Piaget reuniu saberes da Biologia, da Psicologia e da Filosofia no conceito do sujeito epistêmico.



Que características tão especiais são essas? "Basicamente, a capacidade mental de construir relações", explica Zélia Ramozzi-Chiarottino, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Essa habilidade permite o desenvolvimento de uma gama de operações essenciais para a aquisição do saber: observar, classificar, organizar, explicar, provar, abstrair, reconstruir, fazer conexões, antecipar e concluir - ações que, de fato, todos temos o potencial de realizar. Um esquimó, por exemplo, é capaz de diferenciar a paisagem fria e se localizar no gelo assim como um índio brasileiro sabe caminhar pela Floresta Amazônica sem se perder. Em ambos os casos, o modo de classificar (no caso, mapear) e reconhecer o espaço geográfico é o mesmo. O que muda é a coisa classificada, que varia de acordo com o meio. 



O conceito de sujeito epistêmico (leia um resumo no quadro abaixo) começou a tomar forma quando Piaget iniciou seus estudos sobre o processo de construção de conhecimentos de Matemática e Física na criança pequena. "Ele é considerado o inaugurador da epistemologia genética, teoria que investiga a gênese do conhecimento, tema que estava ausente das pesquisas até o fim do século 19", diz Lino de Macedo, também do Instituto de Psicologia da USP. Até então, as formulações sobre o desenvolvimento da inteligência eram uma exclusividade dos filósofos. As ideias de um deles, o alemão Immanuel Kant (1724-1804), tiveram grande impacto na obra de Piaget. Kant foi um dos primeiros a sugerir que o conhecimento vem da interação do sujeito com o meio - uma alternativa ao inatismo, que considerava o saber como algo congênito, e ao empirismo, que encarava o saber como um elemento externo que só podia ser adquirido pela experiência (leia mais no quadro). 



Ao retrabalhar as proposições de Kant, Piaget concordou com a ideia da interação sujeito/meio - mas foi além, afirmando que o desenvolvimento das estruturas mentais se inicia no nascimento, quando o indivíduo começa o processo de troca com o universo ao seu redor. Ele também destacou a necessidade de uma postura ativa para aprender. Imagine, por exemplo, uma pessoa que more a vida inteira numa montanha. Ela pode nunca saber que existem terras baixas, planícies e vales de rio. Por outro lado, se decidir fazer uma viagem morro abaixo, vai conhecer a paisagem de seu entorno e, por meio das relações (comparação e classificação, por exemplo), vai entender que a montanha é um elemento natural diferente dos demais. "Para que o processo de estruturação cognitiva ocorra, é fundamental a ação do sujeito sobre o meio em que vive. Sem isso, não há conhecimento", completa Zélia (leia mais no quadro da página seguinte).

Cada nova informação, uma constante reelaboração

A Filosofia não foi a única disciplina com a qual Piaget dialogou. Da Biologia, o pesquisador considerou as ideias evolutivas do naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829). Da Psicologia, continuou os estudos pioneiros de seu mestre, o suíço Édouard Claparède (1873-1940), sobre o pensamento infantil. Armado com o conhecimento dessas três áreas (e de décadas de observação e entrevistas com crianças), o pensador suíço terminou por se contrapor a vários pontos da filosofia de Kant, argumentando que as estruturas cognitivas não nascem com o indivíduo. À exceção da habilidade de construir relações (para Piaget, essa é a única característica pré-formada no ser humano), as demais são construídas e reelaboradas ao longo do tempo. Cada nova informação atualiza não só o que se aprende mas também as formas por meio das quais se aprende. 


Um exemplo ajuda a ilustrar essa ideia. Para a Ciência, a noção do espaço (e) como resultado do produto da velocidade (v) pelo tempo (t) é uma verdade universal, expressa pela fórmula e = v X t. Mesmo quem ignora essa equação sabe que percorrerá uma distância maior num mesmo intervalo de tempo caso decida correr, em vez de andar, certo? Isso é uma forma de conhecimento, ainda que não formalizada. Já indivíduos que conhecem a fórmula podem prever a velocidade necessária para cobrir determinada distância no tempo estipulado, ou imaginar se uma equação semelhante pode explicar outros processos e fenômenos da natureza. 



O conhecimento avança, mas num processo não cumulativo 



Para o indivíduo que aprende, esse avanço de um nível de menor conhecimento para outro maior inclui o questionamento constante do que já se sabe, revendo certezas e admitindo a validade de determinadas afirmações apenas em alguns casos. Estudantes das séries iniciais, por exemplo, geralmente supõem que, ao multiplicar um número por outro, o resultado será invariavelmente maior. Entretanto, quando se deparam com os números racionais (frações e decimais menores que 1), percebem que nem sempre a regra é verdadeira. "O conhecimento não é cumulativo. Ao mesmo tempo que alguns saberes são adquiridos, outros podem ser modificados ou superados", afirma Adrian Oscar Dongo Montoya, professor da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquista Filho" (Unesp), campus de Marília. 



No terreno da Educação, a concepção de sujeito epistêmico continua válida. Contribuiu, aliás, para transformar definitivamente as ideias sobre o papel do aluno em sala de aula. Se o conhecimento nasce da interação com o meio, não é mais possível pensar numa criança que só escuta, passivamente, a exposição dos conteúdos. Estudos recentes vêm confirmando os efeitos do meio ambiente sobre o funcionamento do cérebro, assim como o valor de um comportamento ativo como motor da evolução. "Todo estudante precisa enfrentar problemas para avançar. Não adianta o professor dizer como se resolve. Faz parte do aprendizado tentar soluções e experimentar hipóteses para superar desafios", explica Lino de Macedo. 



Justamente nesse ponto, aparece outra ressalva à teoria piagetiana. Segundo alguns críticos, ele teria dado pouca atenção às interações sociais (como as que ocorrem com colegas e professores), como se para adquirir conhecimento bastasse o indivíduo interagir individualmente com o meio. "Não é isso o que Piaget defende. É um equívoco dizer que ele fechou os olhos para as trocas sociais", acredita Macedo. "A cobrança de um colega por argumentos ou o pedido para que explique melhor o que pensa sobre determinado tema faz com que o indivíduo se desenvolva. O sujeito epistêmico é um sujeito social, que compartilha e debate hipóteses", conclui.


Na Educação, a importância de testar hipóteses e soluções 


Outra concepção diretamente derivada da obra de Jean Piaget é a noção de que, se todos têm as mesmas possibilidades de construir conhecimento, então todos podem aprender. A essa altura, uma questão parece inevitável: o que explica as diferenças de conhecimento - por vezes tão acentuadas - entre os indivíduos? Por que algumas pessoas chegam à idade adulta com um amplo domínio dos conteúdos científicos e outras não? 



Para o grande pensador suíço, salvo nos casos de indivíduos com algum dano cerebral, a capacidade de aprender está diretamente relacionada às oportunidades de troca. A explicação para os distintos níveis de aprendizagem passa por aí: hoje sabe-se, por exemplo, que crianças que possuem contato com livros em casa chegam à escola com mais facilidade para se alfabetizar do que as que vivem em famílias que não têm o hábito da leitura. "Tais defasagens, porém, são transitórias. Se tiverem mais oportunidades, essas crianças podem perfeitamente superar as diferenças", completa Zélia.

Trecho de livro


"As coordenações de todos os sistemas de ação traduzem, assim, o que há de comum em todos os sujeitos e se referem, portanto, a um sujeito universal, ou seja, sujeito epistêmico e não ao sujeito individual." 
Jean Piaget e Beth Evert, no livro Épistémologie Mathématique et Psychologie. 

Comentário 
Para chegar ao conceito do sujeito epistêmico, Piaget investigou características comuns a todas as pessoas no processo do desenvolvimento da inteligência. De acordo com ele, "o que há de comum em todos os sujeitos" é a maneira como elas estruturam e organizam as coisas que conhecem: a capacidade de relacionar, classificar, abstrair, separar e agrupar, entre outras, que o autor chama de "coordenações de sistemas de ação". O sujeito individual, por outro lado, é único: vive em época e cultura específicas, que influenciam suas crenças e opiniões.

São as formas como o ser humano interage com o mundo. Nesse processo, ele organiza mentalmente a realidade para entendê-la, desenvolvendo a inteligência. 

Com o conceito de esquemas de ação, Jean Piaget mostrou como as ações dos indivíduos sobre o meio são o motor da aquisição de conhecimento


O bebê explora, põe tudo na boca, descobre novos objetos. A menina brinca de casinha, o menino representa uma corrida com seus carrinhos de brinquedo. Um pouco mais tarde, ambos voltam a atenção às regras de conduta e moralidade. Já o adolescente, mais reflexivo, é capaz de construir argumentos para rebater os dos pais e planejar o próprio futuro. São formas diferentes de interagir com o mundo, que vão se tornando mais complexas à medida que o indivíduo cresce. Na obra de Jean Piaget (1896-1980), esses mecanismos recebem o nome de esquemas de ação e são considerados o motor do conhecimento. 


Há inúmeras possibilidades de esquemas de ação (leia um resumo do conceito na última página). Mamar, sugar, puxar e prender são esquemas comuns no desenvolvimento da inteligência sensório-motora (em média, até 2 anos de idade). Imitar, representar e classificar é típico da inteligência pré-operatória (aproximadamente de 3 a 7 anos), assim como ordenar, relacionar e abstrair caracteriza o período operatório-concreto (de 8 a 11 anos). Já argumentar, deduzir e inferir aparece na estruturação da inteligência operatória formal (a partir dos 12 anos). É com base nesses esquemas que as pessoas constroem as estruturas mentais que possibilitam o aprendizado (leia um trecho de livro sobre o assunto no quadro da próxima página). "Inicialmente, isso se dá com a experiência empírica, concreta. Em seguida, conforme a criança vai se desenvolvendo, ela caminha em direção ao pensamento formal, abstrato", explica Agnela da Silva Giusta, professora de Ensino de Ciências e Matemática da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). 



As pesquisas científicas de Piaget sobre as características do pensamento infantil receberam a contribuição de importantes acontecimentos em sua trajetória pessoal. Entre 1925 e 1931, nasceram seus três filhos, ponto de partida para uma etapa de observação de seus comportamentos. Após uma criteriosa análise dos dois primeiros anos de vida dos bebês, Piaget chegou à conclusão de que a inteligência se desenvolve desde o nascimento - e não com o surgimento da fala, como era comum pensar até o início do século 20. 



No livro A Epistemologia Genética, o pensador suíço divide o processo "dinâmico e infinito" do desenvolvimento da capacidade de conhecer em quatro períodos. No sensório-motor, que vai desde o nascimento até os 2 anos, a criança conhece o mundo por meio dos esquemas de ações que trabalham sensações e movimentos. Ao nascer, o bebê percebe o mundo como uma extensão do seu corpo. Ao desenvolver o esquema de sucção, por exemplo, o bebê começa a diferenciar o que é seio da mãe, o bico da mamadeira, a chupeta ou mesmo o dedo. Com o tempo, consegue identificar objetos que são sugáveis ou não. Um dos principais resultados desse período é a criança tomar consciência de si mesma e dos objetos que a cercam. "Esse processo é chamado por Piaget de construção do objeto permanente, ou descentração", explica Cilene Charkur, professora aposentada da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Unesp), campus de Araraquara. 



Nessa fase, mesmo antes de falar e pensar, a criança consegue realizar condutas consideradas lógicas, ligadas à ação sobre objetos concretos. Um bebê de 8 meses, por exemplo, pode afastar um brinquedo para pegar outro de seu interesse. "Nesse caso, ele coordena dois esquemas: um esquema meio (afastar) e outro esquema fim (pegar). Trata-se de uma integração recíproca entre duas ações e não só uma associação mecânica", afirma Adrian Oscar Dongo Montoya, professor da Unesp, campus de Marília.


A capacidade de simbolizar marca a passagem de período


Uma conquista mais significativa, porém, aparece quando a criança desenvolve a capacidade semiótica - ou seja, a habilidade de atribuir valor simbólico às coisas. Por exemplo, ouvir a palavra "cadeira" e ser capaz de imaginar um modelo sem precisar tê-lo diante dos olhos naquele momento. Essa capacidade - a de representação - indica, para Piaget, a entrada no período pré-operatório (de 3 a 7 anos), com o aparecimento dos primeiros esquemas de ação mentais - como a fala. "A linguagem é uma ação sofisticada. Com ela, é possível transformar o mundo sem recorrer aos objetos", afirma Agnela. 


No terceiro período, chamado de operatório-concreto (de 8 a 11 anos), a criança amplia a capacidade de agir (ou seja, operar) sobre o real (os objetos concretos). Já é capaz de relacionar, classificar, comparar objetos seguindo critérios lógicos e realizar as primeiras operações aritméticas e geométricas. "É possível trabalhar com grandes números, superando os limites impostos pela contagem com suporte físico", diz Agnela. 



O que marca a entrada no quarto período, o operatório formal, a partir dos 12 anos, é a capacidade de pensar por hipótese. O indivíduo pode agir não só sobre o real mas também sobre o possível, criando teorias. Por exemplo, pode imaginar que, se não houvesse a Revolução Francesa, a monarquia seria o sistema de governo predominante até hoje. Essa hipótese não é real, mas é possível.

Trecho de livro


"Conhecer um objeto implica a sua incorporação a esquemas de ação, e isto é verdade desde os comportamentos sensórios-motores elementares até as operações lógico-matemáticas superiores."
Jean Piaget no livro Biologia e Conhecimento

Comentário 
Na citação, Piaget aponta para o processo pelo qual as pessoas passam de um conhecimento mais simples a outro mais complexo. Nessa trajetória, os esquemas de ação se ampliam, expandem e incorporam novas informações com base na interação com o meio e de acordo com o período de desenvolvimento do indivíduo. É o que ocorre no esquema de reunião. No período sensório-motor, o bebê é capaz de brincar reunindo cubos. Uma criança um pouco mais velha irá classificar esses cubos segundo suas qualidades, como cor, tamanho, formas, peso etc. Finalmente, ao atingir o patamar formal, conseguirá reunir formas incontáveis, como aspectos comuns a diferentes teorias.


TUDO EM FAMÍLIA O nascimento dos três filhos, retratados nesta foto de 1936,forneceu elementos à teoria

Um dos grandes legados da noção de esquemas de ação foi a compreensão da importância da primeira infância no desenvolvimento da inteligência. "O resultado disso é que há hoje em todo o mundo uma grande demanda por uma Educação Infantil de qualidade, que possibilite aos pequenos vivenciar, interagir, experimentar e, com isso, ampliar o desenvolvimento de suas possibilidades cognitivas", lembra Adrian. 


Isso não impediu que algumas nuances da ideia fossem mal interpretadas. O apego excessivo à faixa etária de cada período é um deles. "Muitos professores compreendem os estágios como uma forma congelada de classificação dos alunos, sem perceber que a indicação de idade é apenas uma aproximação e que as passagens de uma fase para outra dependem da qualidade das interações de cada um com o meio", explica Agnela. 



Essa postura pode gerar dois problemas. O primeiro é considerar apenas o ensino do conteúdo sem notar os conhecimentos e as habilidades de que o aluno dispõe para compreendê-lo. No outro extremo, está o comportamento de ficar apenas focado no que o aluno consegue fazer e não atentar para ensinar outros conteúdos mais complexos. "Um bom trabalho deve congregar os dois pontos de vista: enxergar as potencialidades das crianças e também aonde se quer chegar, tendo claros os conteúdos que não devem ser deixados de ensinar", explica Lino de Macedo, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). O próprio Piaget refutava a ideia de que é necessário esperar passivamente que as estruturas mentais se formem. Ao contrário, a ação educativa favorece fortemente essa construção. 



Para cumprir esse objetivo, vale sempre favorecer uma atitude inquiridora, com a utilização, por exemplo, de situações-problema (leia a última página). "Em qualquer idade, a criança precisa ser provocada", afirma Cilene. Para ela, um dos grandes desafios do professor é gerar interesse pelo que deve ser ensinado. "Não existe uma criança que não tenha vontade de aprender. O problema é que muitas vezes as condições ofertadas nas aulas não são favoráveis."



A expressão designa os saberes que os alunos possuem e que são essenciais para o aprendizado. Não pode ser confundido com pré-requisito

Entenda por que aquilo cada um já sabe é a ponte para saber mais

Virou quase uma obrigação. Não há (ou pelo menos não deveria haver) professor que inicie a abordagem de um conteúdo sem antes identificar o que sua turma efetivamente conhece sobre o que será tratado. Apesar de corriqueira nos dias de hoje, a prática estava ausente da rotina escolar até o início do século passado. Foi Jean Piaget (1896-1980) quem primeiro chamou a atenção para a importância daquilo que, no atual jargão da área, convencionou chamar-se de conhecimento prévio (leia um resumo do conceito na última página)


As investigações do cientista suíço foram feitas sob a perspectiva do desenvolvimento intelectual. Para entender como a criança passa de um conhecimento mais simples a outro mais complexo, Piaget conduziu um trabalho que durou décadas no Instituto Jean-Jacques Rousseau e no Centro Internacional de Epistemologia Genética, ambos em Genebra, Suíça. Ao observar exaustivamente como os pequenos comparavam, classificavam, ordenavam e relacionavam diferentes objetos, ele compreendeu que a inteligência se desenvolve por um processo de sucessivas fases (leia um trecho de livro na página 3). Dependendo da qualidade das interações de cada sujeito com o meio, as estruturas mentais - condições prévias para o aprendizado, conforme descreve o suíço em sua obra - vão se tornando mais complexas até o fim da vida. Em cada fase do desenvolvimento, elas determinam os limites do que os indivíduos podem compreender. 



Dessa perspectiva, fica claro que o cerne de sua investigação relaciona-se à capacidade de raciocínio. Por não estudar o processo do ponto de vista da Educação formal, Piaget não se interessava tanto pelo conhecimento como conteúdo de ensino. Na década de 1960, esse tema mereceu a atenção de outro célebre pensador da Psicologia da Educação, o americano David Ausubel (1918-2008). "Ele foi possivelmente um dos primeiros a usar a expressão conhecimento prévio, hoje consagrada entre os professores", diz Evelyse dos Santos Lemos, pesquisadora do ensino de Ciências e Biologia do Instituto Oswaldo Cruz. 



De acordo com Ausubel, o que o aluno já sabe - a ideia-âncora, na sua denominação - é a ponte para a construção de um novo conhecimento por meio da reconfiguração das estruturas mentais existentes ou da elaboração de outras novas. Quando a criança reflete sobre um conteúdo novo, ele ganha significado e torna mais complexo o conhecimento prévio. Para o americano, o conjunto de saberes que a pessoa traz como contribuição ao aprendizado é tão essencial que mereceu uma citação contundente, no livro Psicologia Educacional: "O fator isolado mais importante influenciando a aprendizagem é aquilo que o aprendiz já sabe. Descubra isso e ensine-o de acordo". 



Ao enfatizarem aspectos distintos do conhecimento prévio, as visões de Piaget e Ausubel se complementam. "Para aprender algo são necessárias estruturas mentais que deem conta de novas complexidades e também conteúdos anteriores que ajudam a assimilar saberes", diz Fernando Becker, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


Sondagens de saberes: como fazê-las bem

Não resta dúvida de que a força conferida ao conhecimento prévio transformou as rotinas das salas de aula (leia a questão de concurso na última página). Entretanto, ainda persistem alguns mal-entendidos relacionados ao tema. O mais básico deles é realizar a sondagem do que a turma sabe, mas não utilizar esse resultado no planejamento do trabalho diário. "De nada adianta coletar informações se elas não servirem como guia para orientar atividades, agrupamentos e intervenções", defende Tania Beatriz Iwaszko Marques, docente da UFRGS. 


Outro engano recorrente diz respeito à forma como as sondagens são conduzidas. Para muitos professores, diagnosticar conhecimentos prévios equivale a conversar com os alunos e ver o que eles sabem sobre o assunto. Essa raramente é a melhor estratégia. Digamos, por exemplo, que o objetivo de um docente de Educação Física é ensinar futebol. Dificilmente ele vai conhecer a condição prévia de cada criança a não ser que as coloque para jogar. "O caminho mais indicado para identificar os saberes dos estudantes é propor situações-problema, desafios que os obriguem a mobilizar o conhecimento que possuem para resolver determinada tarefa", afirma Regina Scarpa, coordenadora pedagógica de NOVA ESCOLA. 



Também vale pôr em xeque a tese de que todos os saberes que a turma possui sempre colaboram para a construção de um conhecimento. Na verdade, em alguns casos, eles podem até ser um obstáculo. No campo das Ciências, por exemplo, a experiência empírica das crianças as leva a pensar que, entre os seres vivos, aqueles que se locomovem são animais, enquanto os demais são vegetais. Essa noção pode dificultar a compreensão de que corais e esponjas sejam animais. A nova informação somente será compreendida quando os alunos perceberem a incoerência explicativa da ideia anterior. No caso, estudando as características específicas de celenterados e poríferos e compreendendo que animais e movimento não são características indissociáveis.


Conhecimento prévio não é sinônimo de pré-requisito

Um último ponto - fundamental - é desfazer a confusão entre conhecimento prévio e os chamados pré-requisitos. Apesar do uso corrente como sinônimos, no campo da Educação os dois termos não significam a mesma coisa. Enquanto conhecimento prévio diz respeito aos saberes que os alunos já possuem, os pré-requisitos constituem uma lista, muitas vezes arbitrária, de conteúdos e habilidades sem as quais, teoricamente, não seria possível avançar para o conteúdo seguinte. Há dois problemas com o uso de pré-requisitos. O primeiro é excluir do processo educativo alunos que não dominam determinado tema. O segundo é que, em muitos casos, os pré-requisitos determinados pelo professor são aleatórios e não têm relação com o processo de aprendizagem. Na alfabetização, por exemplo, pensava-se há até pouco tempo que conhecer todas as letras do alfabeto era um pré-requisito para começar a escrever. Hoje, as pesquisas psicogenéticas mostram que isso não é verdade, já que as letras do nome próprio funcionam como um primeiro referencial para as crianças arriscarem a escrita. "Trabalhar com conhecimento prévio, em vez de pré-requisitos, aprimora o ensino", finaliza Regina.
Trecho de livro


"Para que um novo instrumento lógico se construa, é preciso sempre instrumentos lógicos preliminares; quer dizer que a construção de uma nova noção suporá sempre substratos, subestruturas anteriores e isso por regressões indefinidas."
Jean Piaget, no livro Problemas de Psicologia Genética (coleção Os Pensadores)

Comentário 
Para Piaget, todo conhecimento somente é possível porque há outros anteriores. É dessa maneira que se desenvolve a inteligência. Desde o nascimento, as pessoas começam a realizar um processo contínuo e infinito de construção do conhecimento, alcançando níveis cada vez mais complexos. Construídas passo a passo, as estruturas cognitivas são condições prévias para a elaboração de outras mais complexas. Ao agir sobre um novo objeto ou situação que entre em conflito com as capacidades já existentes, as pessoas fazem um esforço de modificação para que suas estruturas compreendam a novidade.
Os termos se referem ao processo de ampliação de conhecimentos, resultado de duas etapas indissociáveis: a assimilação e a acomodação



Com o conceito de equilibração, Piaget demonstrou que a Inteligência deve ser confrontada para evoluir




Novos discípulos Os estudos de Piaget foram continuados por diversos pesquisadores, como a nipo-americana Constance Kamii (à direita, em foto de 1965), que os aplicou à Matemática

Conseguir o equilíbrio, atingir uma posição estável após superar dificuldades e sobressaltos. Esse é um processo básico na trajetória do ser humano, uma ação continuada que permite, a um só tempo, sua evolução e sua sobrevivência. Para suprir as necessidades básicas (como saciar a fome), o homem precisou enfrentar situações inéditas (para ficar no exemplo da nutrição: aprender quais frutos eram comestíveis, desenvolver instrumentos de caça e criar processos industriais para a esterilização de alimentos). A obra de Jean Piaget (1896-1980) defende que esse processo também ocorre com a inteligência. Influenciado pelas teorias evolutivas da Biologia, o cientista suíço demonstrou que a capacidade de conhecer não é inata e nem resultado direto da experiência. Ela é construída pelo indivíduo à medida que a interação com o meio o desequilibra - ou seja, o desafia -, exigindo novas adaptações que possibilitam reequilibrar-se, numa caminhada evolutiva. A inteligência humana se renova a cada descoberta. 


O argumento de Piaget é que, desde o nascimento, a criança constrói infinitamente suas estruturas cognitivas em busca de uma melhor adaptação ao meio. No começo de seus estudos, ele utilizou o termo "adaptação" para nomear o processo pelo qual as crianças passam de um nível de conhecimento simples a outro mais complexo. Alguns anos mais tarde, optou pelo conceito de equilibração e, mais tarde, à ideia de abstração reflexiva. Como desses três sinônimos equilibração é o termo mais conhecido, é a ele que vamos nos referir ao longo da reportagem. 



Sua ocorrência se dá por meio de duas etapas complementares. A primeira delas, chamada de assimilação, é uma ação externa: consiste em utilizar os chamados esquemas de ação (formas como interagimos com o mundo, como classificar, ordenar, relacionar etc.) para compreender as características de determinado conceito. A segunda, a acomodação, é um processo interno: diz respeito à construção de novas estruturas cognitivas (com base nas pré-existentes, mas ampliando-as). Isso permite assimilar a novidade, chegando a um novo estado de equilíbrio.



O avanço intelectual nem sempre ocorre 


Não é sempre que a equilibração é possível. Há casos em que, ao ser desafiada a compreender determinada informação, a criança mostra-se perdida ou desinteressada. "É o que ocorre quando perguntamos algo que está completamente fora do campo de compreensão da criança. Em situações como essa, em geral, ela simplesmente ignora a proposta de trabalho ou muda de assunto", explica Orly Zucatto Mantovani de Assis, professora aposentada e coordenadora do Laboratório de Psicologia Genética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 



Em outras ocasiões, a criança pode entender parcialmente o novo, deformando alguns de seus aspectos para que eles caibam no seu modo de compreender - ou, para falar de um jeito mais técnico, em seus esquemas de assimilação. Por exemplo, uma criança pode pensar, por intuição ou analogia, que o gato é um ser vivo porque se movimenta. Da mesma maneira, conclui o pequeno, a árvore também é um ser vivo, pois suas folhas balançam ao sabor do vento. Apesar de a ideia de que animais e vegetais possuem vida ter sido assimilada, o raciocínio não está adequado porque alguns aspectos foram deformados - quando ela perceber que o movimento do gato é autônomo e o da árvore é resultado do vento sobre as folhas, haverá outro processo de equilibração, que tornará esse conhecimento (sempre provisório e passível de ampliação) mais correto e complexo. 



Há, finalmente, situações em que ocorre a chamada "equilibração majorante", quando o indivíduo constrói as estruturas mentais que possibilitam subir de nível cognitivo - ou seja, compreender algo novo. O papel do meio (família, escola etc.) é fundamental nesse processo. Imagine duas bolas de argila com o mesmo peso e tamanho. Ao ver uma delas ser alongada, resultando num tubinho, uma criança afirma que a mudança da forma do objeto resultou na diminuição da sua massa. Com a informação trazida por esse erro (a de que ela ainda não construiu as estruturas cognitivas responsáveis pela noção de conservação da substância), é preciso propor desafios para mostrar a inconsistência da explicação. 



É o que ocorre quando uma criança observa a mesma quantidade de água em dois copos iguais, de mesma altura e mesmo diâmetro. Em seguida, um dos copos tem todo o seu conteúdo transferido para outro de mesmo volume, porém com altura menor e diâmetro maior. A tarefa da criança é responder se a quantidade do líquido se mantém ou não. Dessa vez, ela acerta. Em outras palavras, houve equilibração majorante, com a criação de estruturas disponíveis para a solução de outros problemas similares.



O conceito de equilibração na sala de aula 


Apesar de não ter sido concebido num ambiente escolar, o conceito de equilibração ecoa diretamente na sala de aula. Juan Delval, aluno de Piaget e atualmente professor da Universidade Autônoma de Madri, na Espanha, explica que a ideia reforça a diferença entre ensino e aprendizagem: aquilo que cada estudante aprenderá não é exatamente o que o professor verbaliza em sala de aula, nem mesmo o que ele espera que seja assimilado. "A aprendizagem depende dos conhecimentos anteriores de cada um e de suas experiências. Para ampliá-la, além de propor situações que desestabilizem os conhecimentos estabelecidos,é preciso que eles se sintam motivados a realizar um esforço cognitivo para superar o problema", diz. 



O conceito de equilibração também provoca reflexões sobre as formas de ensino mais efetivas, que possibilitem a todos avançar. Dificilmente um aluno compreenderá que a Terra é redonda, apenas porque ouviu a professora falar que o planeta se parece como uma laranja (na verdade, se divulgada isoladamente, a informação pode até entrar em conflito com a experiência intuitiva de que o planeta é plano, ou levantar questionamentos sobre por que as pessoas na parte de baixo do globo não caem). Ele pode até decorar a informação, mas ela não será significativa. Para que todos possam avançar, a pesquisadora argentina Delia Lerner defende situações-problema que os levem a investigar, discutir, refletir, levantar questões e formular hipóteses, assumindo uma postura ativa em seu desenvolvimento. 



Esse reconhecimento, porém, não reduz a importância do professor. "Aceitar que as crianças são intelectualmente ativas não significa supor que o educador é passivo. Pelo contrário, significa assumir modalidades de trabalho que levem em consideração os mecanismos de construção do conhecimento", diz Delia no livro Piaget - Vygostky, Novas Contribuições para o Debate.

Trecho de livro


"Em uma perspectiva da equilibração, deve-se procurar nos desequilíbrios uma das fontes de progresso no desenvolvimento dos conhecimentos, pois só os desequilíbrios obrigam um sujeito a ultrapassar seu estado atual e procurar seja o que for em direções novas." 
Jean Piaget, no livro O Desenvolvimento do Pensamento 

Fonte:http://revistaescola.abril.com.br/jean-piaget/?utm_source=redesabril_novaescola&utm_medium=facebook&utm_campaign=landing&utm_content=link

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