O Fantástico Mundo das Crianças Descabeladas


Raramente busco Helena na escola, já que no nosso acordo quem faz isso é o Marcelo. Todo dia ele leva e busca de bicicleta, mas naquele dia aconteceu uma reunião e fui lá, andando até a escola, atrasada. Meu cabelo é curto, uma confusão entre liso e enrolado, somando que saí sem penteá-lo, chegando lá devia estar uma boa versão da Hebe Camargo.
Helena não é muito diferente, e apesar de ter o cabelo muito escorrido, vive desgrenhado, caindo no olho, com algo grudado na nuca – geralmente é comida que fez a viagem da mão até ali. Enquanto esperava, uma mãe questionava a professora se a filha tinha ido para a escola com o cabelo “bagunçado”. Veja bem, o cabelo dela estava ótimo! Só solto, mas caia em lindos cachos, para nós seria equivalente a arrumar para ir numa festa; só que a mãe ficou muito brava, porque a filha tinha tirado os grampos do cabelo durante o período de aula. Eu entendo da frustração de tentar dar um jeito no cabelo de uma criança e ela correr, gritar, não querer e sair de casa com uma juba fantástica. Essa é a nossa história, até o dia em que desistimos.

 Já tentei também controlar tudo, inclusive o cabelo da minha filha

Quando peguei a Helena, éramos nós duas descabelas e a mãe nos olhou sem jeito, como se nos ofendesse por estar ralhando com a filha sobre os bons modos de ficar com o cabelo arrumado. Sorri, porque já tentei também controlar tudo, inclusive o cabelo da minha filha.
E durante o caminho fiquei pensando muito sobre isso: cabelos. Parece algo bobo, mas já vi pessoas soltarem comentários venenosos por olharem uma criança descabelada ” Mas ué, cadê a mãe dessa criança”. E isso se repete para roupa suja, pé sujo, rosto cheio de comida, água de nariz misturado com baba fazendo aquele colarinho de craca no pescoço. Não negue, você já viu, seu filho já ficou assim e é normal, é um super poder infantil: secreção nasal mega poderosa.

Cabelos têm vida, são espontâneos

Enquanto garotos caminham tranquilamente com litros de gel nos cabelos, meninas por vezes ganham quase um buquê na testa, e ninguém sequer questiona se eles gostariam de sair assim. E a questão aqui é: isso é pelo bem estar da criança ou para nós nos sentirmos bons pais? Será que o cuidado mora num penteado complexo?
Houve uma época em que me falaram que devia insistir nas presilhas até ela se acostumar, só que aquilo me causou um baita desconforto, porque ela parecia desconfortável. Devia quebrar a vontade dela até que ela se habituasse ao que eu acho certo ou devia respeitar o fato de minha filha gostar de ficar com o cabelo solto?

Não levanta. Senta igual mocinha. Vem cá, seu cabelo está horrível. Olha, agora você está toda suja. Nossa, o que vão pensar de mim.

É muito peso para uma mãe, e é mais peso ainda para uma criança.
Sabe, a vida é meio descontrolada. Ela nos suja com respingos, com lama; suas tempestades constantemente nos levam para lugares inusitados, situações frustrantes e bagunçam, bagunçam muito tudo, principalmente cabelos. Nada nunca está sob controle, nem nossos filhos. Devemos educa-los, ensinar sobre respeito, sobre regras e a ouvir antes de sair gritando pela casa, mas e nós? Quem nos ensina que devemos também respeitar a vida de nossos filhos?

Pasmem: crianças têm vida própria

Elas às vezes não querem dar oi, nem serem simpática, não querem saber de conversa, acham que está bem ficar com o cabelo solto em festas chiques ou acreditam que fazer bolha com o canudinho é super legal. E seria isso errado ou apenas nossa imposição sobre a vida de outra pessoa?
Constantemente me pergunto qual é o limite entre educar minha filha e podar dela toda a vontade sobre sua própria existência. Meu maior medo e terror é perceber que estou colocando em prática o famoso “Você não tem que querer”, porque logo depois vem o você não tem direitos, voz, vontades, autoridade, você obedece e pronto. E isso te resume até sufocar, toda uma existência baseada na expectativa e vontade de outros.
E isso não é sobre não limpar, arrumar ou querer o melhor para nossos filhos, mas sobre deixa-los ser como a vida: espontâneos. A infância é a melhor fase porque é o único momento que podemos ser quem queremos ser sem os grandes questionamentos da vida adulta. É uma fase de descoberta, de aprender e ensinar, é sobre cabelos bagunçados, pernas rabiscadas e unhas às vezes sujas de terra.

A pressão social de estar sempre bem, bonita, arrumada, forte, com classe, delicada e sorridente…

Tenho certeza absoluta que aquela mãe da porta da escola é uma pessoa fantástica. Vi a forma carinhosa como ela colocava os sapatos da filha, posso imagina-la dando beijos e abraços naquelas bochechas, mas nela existe uma pressão, que talvez passe no automático para a filha. A pressão social de estar sempre bem, bonita, arrumada, forte, com classe, delicada e sorridente.
São imposições que todos nós lidamos e nossos filhos vão conhecer, e acredito de forma pessoal e intransferível, que quando esse dia chegar, devemos ajuda-los a pegar tais regras sociais, picotar e jogar ao vento. Deixe quem quer ser organizado ser, quem quer ser bagunçado também, existe beleza em todos os formatos, desde que eles sejam espontâneos.
Posso imaginar um mundo de crianças pulando felizes, sujas, descabeladas, respingando baba enquanto lindos dentes se abrem em sorrisos para o mundo, um lugar onde a infância anda de pé sujo e cutuca terra com o dedo indicador. E os pais sentados sob a sombra de uma árvore, num mundo onde a pressão é barrada à porta.

Desculpe, a perfeição hoje você foi banida.

“Lembrou as palavras da sua mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo”. Mia Couto No livro “Estórias Abensonhadas” No conto “O Perfume”.

Fonte: http://www.portalraizes.com/o-fantastico-mundo-das-criancas-descabeladas/ 

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